Um dos importantes dispositivos trazidos pela Lei 12.587 (Lei da Mobilidade Urbana) trata da política tarifária. Uma delas é a distinção entre a "tarifa de remuneração” pelos serviços de transporte coletivo de passageiros prestados pelo operador e o "preço público” – que é a tarifa fixada pelo Poder Público e cobrada ao usuário dos serviços. Essa distinção é muito importante para tornar mais claras duas questões: quanto custa o serviço de transporte e quem deve pagar esta conta.
Na discussão sobre os custos de transporte, há algumas experiências, como a remuneração pela quilometragem rodada, a remuneração pelo número de passageiros transportados e a mais utilizada, a remuneração por passageiro x quilômetro. As duas primeiras maneiras podem permitir brechas para maus serviços, como operar com oferta excessiva, e consequentemente com o sistema ocioso (primeiro modelo) ou operar os serviços com insuficiência de oferta e, consequentemente, com lotação excessiva (segundo modelo). A terceira maneira, ao vincular os dois fatores, busca uma oferta compatível com a demanda segundo níveis de serviço de qualidade satisfatória.
De qualquer maneira, em qualquer um deles, o custo operacional dos serviços é dependente da configuração dos serviços (disposição de itinerários, extensão de linhas, frequência de serviços e velocidade média dos ônibus), já que os insumos são variáveis associadas à quilometragem rodada, e a mão de obra é função da frota de ônibus utilizada. Mais do que discutir o custo de manutenção, pessoal e frota, trata-se, também, de discutir, como os serviços são planejados espacial e operacionalmente.
Por outro lado, se a política tarifária da cidade define que o usuário do serviço deve pagar pelos serviços prestados, passa a importar quantos passageiros utilizam o serviço disponibilizado, que em geral é traduzido por um índice – índice de passageiros por quilômetro (IPK). Há, então, a necessidade que a configuração dos serviços – espacial e operacional – seja eficiente no transporte do maior número de pessoas. Havendo mais pagantes, naturalmente menor será o valor para cada um dos passageiros. Neste modelo, as gratuidades previstas em lei – as constitucionais (idosos e deficientes) e as históricas (carteiros, poder judiciário e polícia) – e as viagens com descontos (estudantes) devem ser debitadas dos demais passageiros pagantes das tarifas cheias.
Em algumas cidades, para eliminar o peso dos descontos, o Poder Público cobre a diferença, subsidiando o serviço. Em São Paulo, isto consome mais de R$1,2 bilhão de reais anualmente, e no Rio de Janeiro, R$500 milhões, recursos cobertos pelo Tesouro Municipal, em outras palavras, pelos impostos e outras fontes de arrecadação públicas. Neste caso, quem paga a diferença são todos os cidadãos. Ressalta-se que, no caso dos sistemas sobre trilhos, há elevados subsídios em face dos sistemas requererem vultosos investimentos, seja para construção de novas linhas, seja para reforma e modernização dos sistemas.
Pelo menos duas outras políticas foram muito importantes no intuito de minimizar o custo do transporte para o passageiro. A primeira delas foi a publicação, em 1985, da lei que instituiu o Vale-Transporte, que estabeleceu que parte do custo do transporte do trabalhador fosse paga pelo empregador. Neste caso, o trabalhador paga apenas 6% do seu salário, o que significa pagar R$40,00 para um mês de transporte (economia mínima de R$82,00), caso receba um salário mínimo. A segunda foi a instituição do Bilhete Único (tarifa temporal), válido durante um período e permitindo ao usuário se transferir livremente para até três linhas de ônibus durante sua viagem, introduzida em São Paulo, em maio de 2004.
O Bilhete Único permitia, inicialmente, a realização de transferências livres entre linhas (ou entre ônibus na mesma linha) sem acréscimo de custo dentro de um período inicial de duas horas. Posteriormente, em 2005/2006, a utilização deste bilhete foi admitida também no metrô e a na ferrovia, sendo cobrada uma parcela adicional pelo sistema sobre trilhos e, finalmente, em 2008, o período de uso foi estendido para três horas (mantendo-se as duas horas originais para estudantes e vale-transporte).
As transferências livres entre ônibus em São Paulo, em 2012, segundo dados da SPTrans, representaram 967 milhões de viagens em 2,9 bilhões, ou 33,4% do total. A adoção da medida acrescentou, já no primeiro ano de uso, cerca de 900 milhões de viagens no sistema de ônibus de São Paulo (saltou de 1,6 bilhão em 2004, para 2,5 bilhão em 2005). Com a adoção deste bilhete para os sistemas sobre trilhos (metrô e ferrovia), em 2006, a demanda diária passou dos 4 milhões de viagens (2,6 no metrô e 1,4 na ferrovia) para 7,5 milhões em 2013.
Neste momento, volta à discussão, e de forma mais acalorada, a desoneração da tarifa. Incidem sobre a planilha de custos quatro tipo de impostos, dependendo do item considerado: PIS e COFINS (federais), ICM (estadual) e ISS (municipal). Naturalmente, que a supressão destes impostos reduzirá, necessariamente, o custo operacional do sistema. Aqui há duas discussões importantes: ao suprimir estes impostos, os respectivos tesouros federais, estaduais e municipais deixarão de receber parcelas provenientes do sistema de transporte e, como os orçamentos são limitados, algum setor da administração pública deixará de receber os valores correspondentes; por outro lado, a redução dos custos operacionais poderá ser rapidamente consumida se a configuração espacial e operacional do sistema de transporte da cidade for ineficiente, elevando novamente os custos operacionais que, no reajuste seguinte, eliminará o benefício inicial.
A adoção da tarifa-zero só agravará a situação exposta, já que os custos serão totalmente cobertos pelo orçamento público, com recursos que serão transferidos de outros setores da administração, sem falar que a demanda irá aumentar significativamente, o que exigirá uma maior oferta de transporte e, portanto, elevando o custo operacional e, consequentemente, carreando mais recursos de outros programas públicos, a menos que novos impostos sejam criados, o que é insustentável politicamente. Nas experiências mundiais deste modelo, houve aumento de demanda de 50% e de até 300%, como foi o caso de Hasselt, na Bélgica (passou de 360 mil viagens, em 1997, para 4,5 milhões, em 2012). A adoção da tarifa zero consumirá grande parte do recurso disponível para investimento em infraestrutura e programas sociais. Sem esse recurso, investimentos serão suspensos e programas de governo serão cancelados.
Acrescente-se que a adoção da tarifa zero será um grande atrativo para transferência de parte das viagens hoje realizadas por metrô, ferrovia, motocicletas, bicicletas e a pé, sem falar da substituição das viagens de automóvel por ônibus para uma parte da população. Logo, é de se esperar que a demanda no sistema de ônibus cresça de 30 a 50%, saindo, no exemplo de São Paulo, dos atuais 10 milhões de deslocamentos por dia para 13 a 15 milhões de deslocamentos, requerendo uma maior oferta de transporte e, consequentemente, maior custo do serviço. Se não se impuser limites de uso, o custo poderá se tornar insuportável para governos e sociedade (veja o exemplo de Hasselt, na Bélgica).
Tecnicamente, a tarifa zero é perfeitamente admissível. No entanto, sem que ocorra uma mudança substancial no planejamento urbano das cidades (cidades mais compactas, corredores mais adensados) e na qualidade da prestação dos serviços e na sua eficiência – racionalização de itinerários, construção de corredores de ônibus com nível de desempenho semelhante a metrôs, prioridade no uso do espaço público nas principais vias que circulam os ônibus, restrição de estacionamento de automóveis, fiscalização eletrônica dos serviços e outras medidas que favoreçam o desempenho dos ônibus – os custos operacionais poderão alcançar níveis estratosféricos e impagáveis e o caos será instalado no serviço de transporte da cidade. O impacto do congestionamento para a circulação dos ônibus foi calculado em estudo realizado pela ANTP e o IPEA, de 1998, que concluiu que os atrasos elevavam em 16% o valor da tarifa (imaginando uma velocidade média dos ônibus de 20 km/h, em contraposição a 12 km/h). Com o aumento do grau de congestionamento, hoje o impacto é estimado em 25%, ou seja, a tarifa poderia ser, em valores atuais, de aproximadamente R$2,25.
Com relação a quem paga a conta, mesmo que o sistema sofra uma revisão completa e se torne eficiente e barato, cabe ainda a indagação do que venha a ser melhor para a cidade e para os cidadãos. Seria a cobertura dos custos do transporte pelo tesouro municipal – tarifa zero (toda a população)? Ou pelos usuários dos serviços (pagantes)? Ou ainda pelos beneficiários indiretos do transporte que é o setor produtivo da atividade econômica (a indústria, o comércio e os serviços)? Essa discussão já teve lugar por ocasião da criação do Vale-Transporte. Do lado da cobertura dos custos (quem paga a conta), não seria melhor um aprimoramento desse benefício, ampliando suas vantagens para os trabalhadores formais, e uma ampla discussão pública sobre gratuidades ou sobre quem deve pagar o transportes dos trabalhadores informais? Em outros termos, quanto a população estaria disposta a subsidiar gratuidades e tarifas com desconto, retirando estes recursos de outros programas sociais?
São Paulo, em 1950, tinha pouco mais de dois milhões de habitantes, ocupava uma área seis vezes menor que a atual, tinha 70 mil carros e 500 quilômetros de linhas de bondes. Nessa cidade compacta e adensada, o transporte coletivo transportava quase todo mundo e o tempo médio de viagem casa-trabalho era de 10 minutos. Hoje é de 64 minutos.
Segundo especialistas, o IPK nas linhas de transporte coletivo na cidade chegou a ser de 10 passageiros por quilômetro no passado. Hoje é menor que 2. O que fez a cidade ser daquela forma?
Foi a maneira como se estruturou ao longo de corredores de transporte coletivo, especialmente das linhas de bonde, que se adensaram e aproximaram as moradias dos locais de trabalho. Ao contrário, a partir da adoção da opção de desenvolvimento urbano baseado no automóvel, a cidade se esparramou, a terra mais próxima ficou mais cara, criando pressão sobre as populações de baixa renda. Com isso, uma parcela desta população se agrupou em favelas ou cortiços próximos das áreas de emprego e outra, mais significativa em volume, buscou moradias compatíveis com sua renda, sendo empurrada para áreas mais distantes do centro, cabendo ao sistema de transporte a sua viabilização. Daí a importância de um Plano Diretor que seja seguido efetivamente e que oriente um plano de mobilidade urbana que configure sistemas de transportes mais eficientes e de melhor qualidade.
Assim, sobra uma discussão importante, com questões que têm que ser colocadas em um plano prioritário em relação à política tarifária:
· Há um plano diretor da cidade que seja capaz de produzir progressivamente transportes mais eficientes e baratos no futuro?
· Há investimentos públicos no sistema de transporte coletivo de passageiros que objetivem aumentar sua eficiência e minorar seus custos?
· Há um plano de mobilidade urbana em que a configuração espacial e operacional do transporte – a oferta – esteja bem dimensionada?
· A rede de transporte é eficiente?
· A forma como a rede de transporte está posta nas cidades tem a qualidade exigida pela população e é a que gera menos custos? Há superposição de linhas? Os itinerários são racionais? A frequência está adequada à demanda?
· O Poder Público tem interesse em redistribuir equitativamente o espaço viário público, transferindo espaços hoje ocupados por automóveis para serem utilizados por ônibus, sabendo-se que uma faixa de tráfego em que circula livremente ônibus pode transportar no mínimo 10 vezes mais pessoas do que sendo utilizada por automóveis?
Como vemos, antes de discutir quem paga a conta, é preciso discutir a qualidade do serviço, se seu custo pode ser reduzido sem perda da qualidade e quanto custará o serviço desejado. Caso contrário, estaremos subsidiando a ineficiência.
Ailton Brasiliense Pires – Presidente da ANTP e
Luiz Carlos Mantovani Néspoli (Branco) – Superintendente da ANTP
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