Semanal ANTP no 394
"Mudanças negociadas somente têm início quando os negociadores passam a enxergar, claramente, a próxima etapa" (Henry Kissinger)
"Diante de impasses, mais importante que procurar resolver o problema, é formulá-lo de forma diferente" (Milenares provérbios, chinês e grego)
As manifestações do último ano venceram!
Venceram ao cravar definitivamente na agenda aquilo que há algumas décadas frequentava tanto estudos, artigos e debates entre formuladores do setor, como sonhos/desejos difusos de usuários; da população, em geral: a qualidade no transporte público. "Qualidade-FIFA”, como sintetizado pelos manifestantes.
E mais: Qualidade como um direito, "direito do cidadão; dever do estado”, bandeira contemporânea da redemocratização, lá nos anos 70/80.
Venceram ao legitimar e tornar irreversível a necessidade de transparência no setor; rompendo dogmas e estratégias de marqueteiros e de governantes desajeitados para o convívio e a gestão democrática.
Venceram ao lograr reduzir, em poucos dias e após ziguezagues de prefeitos e governadores, reajustes que haviam sido anunciados e que já tinham sido postos em prática em muitas cidades; a começar por São Paulo, Rio e as principais capitais do País.
Venceram ao conseguir envolver parlamentares e a imprensa e, com esses, a opinião pública em geral, na ideia de que o binômio, melhor qualidade e tarifas menores, é possível. Bastaria que a "caixa preta” do sistema fosse aberta para que se identificassem as "gorduras das planilhas” (normalmente baseadas nas do GEIPOT- 01, 02) e se mapeassem os conluios da "máfia” dos "barões do asfalto” com os dirigentes públicos; incluindo corrupção.
Quase um ano já se passou. CPIs foram instaladas. Investigações foram feitas pelos órgãos fiscalizadores, de controle e reguladores. Por ora muitas hipóteses, politizações e judicializações. De concreto, apenas medidas com resultados limitados ou sensíveis apenas no médio/longo prazo:
Na frente operacional, aproveitando uma "carona” político-mercadológica, a implementação de medidas imprescindíveis, mas que vinham encontrando dificuldades para serem implementadas, como a ampliação de faixas para o transporte coletivo. E, no econômico-financeiro, aumento de subsídios, apesar de já ter havido diversas medidas de desoneração tributária. Por isso, uma busca (desesperada!) por novas fontes para arcar com tais subsídios.
Enquanto isso, os custos de produção seguem crescendo... e praticamente já "comeram” tais desonerações. E agora?
Lógico que não se pode descartar "gorduras” na planilhas. Nem corrupções. Ambas devem ser enfrentadas! A questão é: supondo que ambas sejam totalmente eliminadas (o que não é simples!), ainda assim haveria margem para se reduzir (ou zerar) adicionalmente tarifas e/ou fazer os investimentos necessários para que se atinja o padrão de qualidade desejado? Aliás, qual é esse padrão? Temos consenso a respeito? Aparentemente não!
Há que se ter claro. Não nos iludamos: produzir transporte público, de qualidade, é caro. Muito caro! Estima-se, por exemplo, que apenas o custeio dos sistemas de ônibus nas cidades brasileiras, no atual padrão, custe cerca de R$ 60 bilhões/ano!
E pior: os custos de produção são crescentes; seja devido ao crescimento dos insumos acima da inflação (dos quais a mão de obra é o proporcionalmente mais relevante), seja pela redução da produtividade sistêmica, decorrente do crescimento acelerado do carregamento do sistema viário – tendência que se deseja reverter com a implantação de faixas e corredores.
Se, ainda mais, queremos melhorar a qualidade (o que é desejável!), custos maiores ainda. Por exemplo: não há dúvida que a coqueluche do momento, os BRTs, tem melhor qualidade de serviço que os corredores à esquerda. Estes que as as faixas exclusivas... Mas especialistas, mais diretamente envolvidos com a implantação de BRTs, estimam que eles custarão mais 15% que os corredores tradicionais! Metrô, no padrão de qualidade que foi consagrado, mais ainda! Como bancar?
A solução passa, inexoravelmente, por aumento de tarifas ou aumento de subsídios ao setor (em SP, Capital, já beirando R$ 2 bilhões/ano!). Ou, combinação dos dois. Mas, a essa altura, mormente em ano eleitoral, prefeitos e governadores pensarão 2... 3... 10 ou mais vezes antes de reajustar tarifas; certo?
Lógico que tecnologia pode contribuir. Mas, se os dados gerados não forem utilizados, que resultado pode trazer? Lógico que normas e contratos, bem elaborados, também podem contribuir para garantir a efetivação dos padrões definidos. Mas, sem que sejam fiscalizados, diligente e rigorosamente, sem que punições sejam aplicadas e executadas, que efeitos terão?
O setor está numa sinuca de bico!
Ainda que com todas essas contribuições, certamente a forma de financiamento do setor precisará também ser revista; seja para seu custeio, seja para os investimentos necessários para se atingir o padrão de qualidade desejado (qualquer que seja sua definição).
A baliza é clara: Não dá para se bancar custeio e investimentos do transporte público (de qualidade!) apenas com tarifas e sincopadas dotações de orçamentos públicos! Não é possível (talvez nem justo!) que usuários banquem, sozinhos, o sistema! Os beneficiários, aí incluídos, principalmente, os empregadores (que já participam do "Vale Transporte”), os concedentes de gratuidades (idosos, estudantes, etc.) e os usuários de transporte individual devem participar do "funding” do setor.
O instrumento mais à mão, de imediato, parece ser a CIDE, criada pela Lei nº 10.336/2001: uma contribuição "incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool etílico combustível…”, cujo produto da arrecadação seria destinada a "I - pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, de gás natural e seus derivados e de derivados de petróleo; II - financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; e III - financiamento de programas de infraestrutura de transportes”. Atenção: custeio de transporte público urbano não estava explicitamente incluído na formulação inicial!
A Lei foi sendo alterada e re-regulamentada; em geral com sucessivas reduções de alíquotas. Há dois anos elas foram zeradas, de forma a compensar o reajuste dos preços de produção dos combustíveis. Só de 2008 até as manifestações de junho de 2013, as estimativas é que deixaram de ser arrecadados R$ 22 bilhões com tais reduções (cerca de 1/3 dos custos anuais do setor no País; ou suficientes para algo como 15 anos de subsídios ao sistema paulistano; ou implantação de uma rede de metrô maior que a atualmente existente em SP!).
A CIDE tem uma quádrupla conveniência/vantagem:
1. Existe no arcabouço jurídico; bastando ajustes legais/regulamentares.
2. Tem mecanismos operacionais já testados. E, associado, p.ex., à "Conta-Sistema”, em SP (e congêneres em diversos outros municípios), mecanismo extremamente confiável, seria instrumento pronto e fácil para operacionalização, imediata, de tais subsídios. Seria como "glicose-na-veia”!
3. Tem duplo objetivo, simultâneos e sinérgicos: aumentar e regular o fluxo de recursos para o transporte público, e onerar um pouco o transporte individual. OBS: Ela pode até ser seletiva, incidindo apenas sobre a gasolina (contribuindo, também, para aumentar a atratividade do etanol – com benefícios, também, ambientais).
4. A se fazer conta: é possível que, no cálculo dos índices inflacionários (FIPE, FGV, etc), os aumentos dos combustíveis, de imediato, sejam mais que compensados, no médio prazo, pelo retardo de reajustes do transporte público e/ou aumento do uso do transporte público.
Além do uso da CIDE, há diversos outros instrumentos/mecanismos sendo discutidos e projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional; discussões que precisam ser aceleradas porque o tempo se esvai e o risco de uma grande desorganização do setor está crescendo! Alguns falam, até, em colapso!
O Forum de Secretários, que se reúne em Curitiba esta semana (dias 27 e 28 de março), tem competência e a responsabilidade de se debruçar sobre a busca de saídas; saídas urgentes.
Mas, talvez, seu principal desafio (até para isso) seja estabelecer estratégias para que a agenda do setor seja redefinida. Isso na busca de instrumentos mais eficazes para implementação de qualidade, modicidade e transparência no setor... bandeiras das manifestações e de tantos técnicos e dirigentes que há décadas pensam o setor.
A atual, pautada pela "caixa preta", "gordura", "máfia" tem nos imobilizado nessa busca de saídas.
Ah! Sim! Redefinição da agenda/pauta e, também, legitimação destas junto a prefeitos e governadores (seus chefes imediatos); junto à imprensa, junto a usuários, população e opinião pública.
Frederico Bussinger – foi Secretário de Transportes de São Paulo; Presidente da CPTM e Diretor do Metrô/SP
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