07/11/2016 - O Globo
Os assaltos corriqueiros e a poeira nos arredores do Colégio
Militar de Fortaleza são um retrato do abandono da maior obra regida pela Lei
de Licitações: o metrô da capital cearense. O que deveria ser uma estação de
transporte público moderna, rodeada de comércio na região nobre da cidade,
tornou-se ponto de consumo de drogas e abrigo informal de moradores de rua.
Eles ocuparam o espaço em torno dos tapumes que escondem o material deteriorado
da obra. O caminho do metrô foi sendo ocupado pela urbanização da cidade de
Fortaleza.
Há três anos, o maior edital regido pela Lei de Licitações
foi vencido por um consórcio formado pela espanhola Acciona e pela paulista Cetenco,
que assumiram a construção da Linha Leste do metrô de Fortaleza por R$ 2,3
bilhões. A três anos da data original de entrega, pouco mais de 1% da obra foi
feito, e o empreendimento parou numa espiral de complicações.
Um dos emblemas do fracasso da empreitada é a imagem dos
quatro “tatuzões” adquiridos pelo governo do Ceará. O equipamento serviria para
escavar túneis do metrô, mas não passa de um aglomerado de toneladas de peças
de metal abandonadas, à espera de definição sobre o contrato.
A situação revela a megalomania empreendedora que tomou
conta do país até o estouro da crise econômica. A compra dos “tatuzões” pelo
governo cearense — em geral, eles são alugados para obras pontuais de
perfuração — é justificada pelos aliados do então governador e mentor da
empreitada, Cid Gomes, como estratégia “estatizante” do passado. A ideia,
segundo auxiliares, era que a construção do metrô fosse política permanente do
governo do estado. Ter tuneladoras (nome formal dos “tatuzões”) significaria
facilitar a ampliação contínua das linhas do transporte coletivo pela cidade.
DECISÃO POLÊMICA
Procurado, o ex-governador não quis comentar o assunto. Mas
os aliados dos irmãos Ferreira Gomes admitem a frustração com a paralisação das
obras e o custo de manutenção do equipamento.
— Não é normal um governo comprar esse equipamento. A ideia
era boa, justificava a compra dos “tatuzões”. Mas acabou significando prejuízo
ao governo. Só para guardar esse equipamento seria coisa de R$ 1 milhão por
mês. E não tem mercado para vender, nem para alugar. Enquanto isso, eles vão se
deteriorando — reconhece um aliado de Cid Gomes.
Governos estadual e federal, que se associaram na obra do
PAC Mobilidade Grandes Cidades, sequer concluíram os primeiros túneis da
licitação. Com a interrupção de pagamentos para a obra em agosto de 2014,
começou o calvário das vencedoras da licitação. A Cetenco alega ter recorrido
administrativamente e na Justiça para receber pelos serviços feitos — segundo
ela, ainda em dívida —, até que enviou informação à sócia Acciona e à
Secretaria de Infraestrutura (Seinfra) do Ceará dizendo que queria deixar o
consórcio.
Segundo o governo cearense, a interrupção dos pagamentos se
deu porque a Cetenco judicializou o processo, e a reformulação do consórcio
ocorreu por causa da desistência da empresa paulista, que não foi corroborada
pela outra empresa do consórcio, a Acciona.
“Como a legislação brasileira não permite que empresas
estrangeiras toquem obras públicas isoladamente, deu-se um prazo para que fosse
prospectada uma outra empresa para compor o consórcio”, explicou a Seinfra.
Numa decisão polêmica, em novembro de 2015, a construtora
cearense Marquise, que fez parte do consórcio que ficou em segundo lugar na
licitação, assumiu o contrato ao lado da Acciona. A mudança foi alvo de
questionamentos pela forma como ocorreu e pelo fato de a empresa ter feito
doações a campanhas de aliados dos irmãos Ciro e Cid Gomes no Ceará, inclusive
ao PSB no estado, partido ao qual os Gomes eram filiados até meados de 2013.
Agentes do Ministério Público Federal criticaram a
substituição, mas o Tribunal de Contas da União (TCU) foi favorável. O Tribunal
opina sobre a obra uma vez que, do total do orçamento, R$ 2 bilhões sairiam dos
cofres federais. Contudo, mesmo com a previsão de verbas federais, o dinheiro
de Caixa e BNDES nunca apareceu em Fortaleza.
Diante do imbróglio, o Ministério das Cidades não liberou
dinheiro. Primeiro, devido a pendências contratuais que o governo do estado
precisava superar. Solucionada esta fase, em junho de 2015, a crise do
consórcio já era um problema real. Novamente, os recursos não saíram.
Para o ministério, “o empreendimento possui problemas
relacionados à licitação e à composição do consórcio executor, que estão sob
análise do TCU e do Ministério Público Federal (MPF), razão pela qual nenhum
recurso pôde ser liberado”. Segundo a pasta, o problema da licitação foi ter
sido feita antes da assinatura dos Termos de Compromisso do Ceará com a União,
o que é caracterizado como licitação pretérita, não recomendada pelo TCU.
PRAZO DE 2019 É CONSIDERADO INEXEQUÍVEL
Excluída do consórcio, a Cetenco contratou um parecer de
peso para questionar o processo. Coube à ex-corregedora do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) Eliana Calmon indicar irregularidades na ação, inclusive em
decisões da Justiça local. Para ela, “a administração descumpriu as regras do
edital, do contrato e da Lei de Licitações, ao tempo em que também afrontou
princípios constitucionais”.
“Os procedimentos do estado do Ceará, pelos seus prepostos,
terminaram por beneficiar e direcionar a licitação em favor da empresa. Agiram
as partes que hoje formam o Consórcio Linha Leste Fortaleza, juntamente com a
Seinfra, atropelando as regras do edital, do contrato e até do instrumento que
levou à formação do Consórcio Cetenco-Acciona”, escreveu a ex-ministra do
Superior Tribunal de Justiça.
A Marquise informa que foi convidada pela empresa detentora
do contrato, aceitou compor o consórcio e destaca que a nova composição foi
referendada pelo TCU. A Acciona não comenta contratos com clientes, mas informa
que a Cetenco pediu rescisão do contrato administrativo. A espanhola informa
que recebeu a Marquise no consórcio porque “havia a necessidade de ter uma
empresa brasileira líder no consórcio, conforme estabelece a Lei 8.666/93”. O
Congresso debate uma reforma na lei das licitações, a própria 8.666/93.
O governo cearense afirma que realiza o replanejamento para
a retomada da obra, com novo cronograma e prazos. Segundo o ministério, o
cronograma depende de aprovação das instituições envolvidas (Caixa e BNDES),
que aguardam posicionamento conclusivo do TCU e MPF para continuidade das
análises. Tudo indica que a retomada será lenta. O consórcio precisa elaborar
um inventário sobre cada trecho da obra para que possam ser avaliados possíveis
danos durante a paralisação. A área técnica do Tribunal de Contas do Estado vê
o prazo, de entrega em setembro de 2019, como “inexequível”.
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