02/09/2016 08:30 - Valor Econômico
Ex-prefeito de Curitiba e ex-governador do Paraná, Jaime Lerner hoje é
mais reconhecido por suas propostas para mobilidade urbana do que pelos 15 anos
dedicados à política. O sistema de transportes que implementou na capital
paranaense em 1974 foi adotado por mais de 250 cidades no mundo. No Rio,
comandou o projeto da região metropolitana para os Jogos Olímpicos, que incluiu
o BRT (Bus Rapid Transit) ou transporte rápido de superfície. "Não temos
mais tempo nem dinheiro para ver no metrô uma solução. Precisamos 'metronizar'
o ônibus e criar um sistema de transportes públicos integrados. Sozinha, a
bicicleta também não resolve", diz ele.
Aos 78 anos, com uma agenda internacional que vai de Angola a países
asiáticos, Lerner defende a redução de vagas de garagem e a progressiva
utilização do carro em sistema de aluguel, como item do mobiliário urbano. Sua
busca de soluções para as cidades é tema do documentário "Jaime Lerner -
Uma História de Sonhos", de Carlos Deiró, que chega aos cinemas no dia 8. O
filme acompanha 30 anos da vida do arquiteto e urbanista, que, nesta entrevista
ao Valor, diz acreditar que, no futuro, trataremos o automóvel com os limites
dados, atualmente, ao cigarro.
Valor: O arquiteto Paulo Mendes da Rocha afirma que, para corrigir as
cidades, é preciso ir em busca dos altos ideais do gênero humano. Há espaço
para isso no Brasil de hoje?
Jaime Lerner: Sempre existe. A cidade é o último refúgio da
solidariedade. É muito mais do que um conjunto de obras. Não dá só para
pensá-la por meio da área econômica, da tecnologia ou da performance. Pensamos
a cidade de maneira integrada: é um projeto de vida, trabalho, mobilidade,
lazer.
Valor: O senhor já disse que uma cidade que divide ricos e pobres em
guetos é mal resolvida. O senhor acha que o Brasil caminha nessa direção?
Lerner: Cada vez mais. As pessoas vão para a Europa, gostam das cidades
e, na verdade, gostam da diversidade que elas apresentam. Chegam aqui e querem
a cidade separada: morar aqui e trabalhar lá. Separam as funções e as pessoas
por renda, idade, religião. Sempre que você faz isso, não acontece coisa boa.
Fala-se em tecnologia para mobilidade e cada vez mais em "smart
cities", cidades resilientes, competitivas. Na verdade, isso são apenas
"gadgets" para serem vendidos. Quando se fala nos grandes problemas,
se esquece que o carro continua ocupando o mesmo espaço.
Valor: Como o senhor vê o papel do automóvel hoje para as metrópoles? A
Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenbrave) divulga
uma queda de 28% nos emplacamentos com relação ao ano passado.
Lerner: Ficamos muito dependentes do automóvel como única solução de
mobilidade. Procura-se o carro sem motorista, avança-se na tecnologia e na
performance. Para resolver o problema da cidade é preciso ter moradia, trabalho,
lazer, tudo junto.
Valor: Como o senhor acha que podemos evoluir para isso?
Lerner: Não é difícil. Em vez de pensar na minha casa minha vida, com a
moradia cada vez mais longe e a cidade mais espalhada, deveríamos pensar minha
casa, minha vida, minha cidade. A mobilidade se resolve por vários meios.
Transformando o ônibus em metrô, que é o BRT, tendo bicicleta e "car
sharing". Você não precisa ser o dono do veículo, isso tem que existir
cada vez mais. Não é ser contra o automóvel. Ele vai continuar a gerar
empregos. Você vai ter o automóvel para viagens, para lazer, mas a maneira de
usá-lo precisa mudar.
Valor: Como o senhor vê a questão das bicicletas para a questão da
mobilidade?
Lerner: Tudo é bom, principalmente com a filosofia de não ser o dono, de
usar conforme a necessidade. Mas pensar que bicicleta vai resolver, não é
verdade. É um modo de transporte sustentável, que ganha cada vez mais
importância nas cidades europeias. Mas tentar resolver só com a bicicleta não
dá em São Paulo. Só uma faixa pintada para o ônibus também não. É necessário
dar ao transporte público a mesma qualidade e até melhor do que o metrô. Em São
Paulo seria como "metronizar" o ônibus, já que 86% dos deslocamentos
são feitos na superfície. Se pensa no transporte só com corredores. É uma visão
equivocada. O que funciona para mobilidade é uma rede de transportes.
Valor: O pedágio urbano seria uma das soluções?
Lerner: Não. É mais uma vez esperar que se dê o dinheiro para o carro
continuar. Em Londres fizeram uma área, foi um sucesso. Depois começaram a
ampliar, foi o contrário.
Valor: Aqui a classe média tem a cultura do carro aos 18 anos.
Lerner: Não sou contra. Tenho um neto com carro que usa transporte
público. O carro é o cigarro do futuro. Vinte anos atrás, quem imaginaria que
seria proibido fumar em todos os recintos fechados? Imagina se na França, na
Espanha, no Japão, as pessoas achariam isso possível. No entanto, aconteceu.
Com o carro vai acontecer o mesmo. As cidades não se viabilizam mais com o uso
do carro no dia a dia. Porque do jeito que está, circular passa a ser uma
tortura.
Valor: Que exemplos de cidades o senhor daria?
Lerner: Qualquer cidade europeia. As cidades brasileiras, todas, têm
grande possibilidade de ser muito melhores. É possível ter uma São Paulo sem
periferia? É. E também um Rio sem periferia. Mas é necessário mudança de
paradigmas, com o pensamento de que a cidade só existe quando ela acontece para
todos e todas as funções têm que estar juntas.
Valor: O senhor acha que o modelo paulistano de rodízio está superado?
Lerner: Caquético. O rodízio, quando se baseia no modelo carro com final
par, carro com final impar, leva o viciado a ter dois automóveis. O rodízio
melhora, mas não é solução.
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