quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Transporte Fretado: vilão ou solução? (Ponto de vista)

Maria Ligia Nakamura Guillen Vianna
ANTP 09/07/2014
Ensaio crítico apresentado no curso de Gestão de Mobilidade Urbana da ANTP

O transporte fretado já foi um assunto em alta, mas atualmente não tem sido discutido com tanta frequência, dando lugar a outros aspectos relacionados à Mobilidade Urbana, como a priorização do transporte público e dos modos não-motorizados. Todavia, é um assunto bastante pertinente, especialmente para cidades de médio porte. Em regiões metropolitanas o transporte fretado foi tratado como vilão. Isso porque, graças a ele muitas pessoas de outros municípios ou de outras regiões metropolitanas conseguem acessar diariamente os grandes centros urbanos, modificando a escala das relações de deslocamento entre moradia e trabalho. Nesse sentido, o município de São Paulo tornou-se caso emblemático ao proibir a entrada dos ônibus fretados. Na época isso causou grandes transtornos ao sistema de transporte público ? ônibus, metrô e trens - dado que houve uma sobredemanda de usuários que antes era atendida pelo transporte fretado e que foi obrigada a utilizar a rede pública existente. No caso específico de São Paulo, a proibição dos fretados foi ao mesmo tempo benéfica e maléfica: benefíca para o sistema viário, que deixou de ser ocupado por esses ônibus; maléfica aos usuários do transporte público coletivo já saturado, que ficou ainda mais sobrecarregado.

Isso nos leva à seguinte reflexão: proibir os ônibus fretados é a solução a ser adotada? Como os municípios devem encarar esse assunto?

Embora tenha seus pontos positivos e negativos, não se pode ignorar a função do transporte fretado nas cidades de médio porte, onde a lógica de funcionamento é diferente e interfere na rede de transporte de forma distinta dos grandes centros urbanos e capitais. Peguemos como exemplo o município de São José dos Campos (SP), que conta com população de 629.921 segundo o Censo de 2010 (IBGE) e que é uma cidade bastante industrial, com empresas como Embraer, GM, Petrobrás, Johnson&Johnson, Panasonic, Rhodia, entre outras. Todas elas são pólos geradores de tráfego e, no geral, localizam-se ou nas proximidades da Rodovia Presidente Dutra, ou em locais mais afastados que ao longo do tempo receberam urbanização nas áreas intermediárias.

Além disso, várias empresas dependem de um único acesso, sem alternativas, o que dificulta o uso de transporte público, tanto pela escassez de linhas, quanto pela alta demanda nos horários de pico. Por isso, todas essas empresas operam linhas de ônibus fretados, que servem tanto os funcionários residentes no município, quanto os residentes em outros municípios do Vale do Paraíba, incluindo ainda municípios da Região Metropolitana de São Paulo. Ao que se sabe, essas empresas cobram dos funcionários que utilizam esse modo um valor simbólico, atraindo tanto usuários potenciais do transporte coletivo quanto do transporte indivídual motorizado.

Se por um lado os fretados utilizam o sistema viário, compartilhando espaço com o transporte público coletivo e com os automóveis, por outro lado deixam de sobrecarregá-lo na medida em que são competitivos com o automóvel, especialmente nos municípios de médio porte, onde a facilidade, o preço e a precariedade do transporte público tornam o modo individual mais atrativo. Ou seja, a oferta de ônibus fretados nessas condições possibilita a migração de usuários do modo individual motorizado para o coletivo, otimizando o uso do sistema viário.

Do ponto de vista urbanístico, a opção por ônibus fretados que fazem trajetos diários casa-trabalho entre diferentes municípios é uma facilidade às pessoas que querem morar em locais mais afastados, seja por questões financeiras, seja por questões pessoais, modificando a forma como as cidades são urbanizadas em função da regionalização do mercado de trabalho . No caso da região do Vale do Paraíba isso é um problema grave, pois a Dutra se tornou a grande artéria de ligação entre as cidades, comprometendo a capacidade da via às pessoas que estão ali só de passagem, de São Paulo ao Rio de Janeiro, por exemplo. Portanto, é necessário reconhecer três níveis de atendimento do transporte fretado: intraurbano; metropolitano e regional ou macrometropolitano .

No nível intraurbano , empresas, indústrias e pólos geradores de tráfego oferecem o serviço aos seus funcionários, buscando atender o deslocamento de grandes quantidades de trabalhadores em horários específicos, que é o caso mais comum em São José dos Campos.

No nível metropolitano , empresas oferecem o serviço de transporte fretado do tipo executivo para deslocamentos dentro de áreas metropolitanas, como existe, por exemplo, da USP para municípios do ABC, que estão dentro da RMSP.

No nível regional ou macrometropolitano , diversas cidades pólo de metrópoles ou aglomerações urbanas são conectadas por ônibus fretados, abarcando cidades além da própria região metropolitana. Tomando por base a existência dessas três escalas de atendimento, observa-se que para o nível intraurbano o fretamento é extremamente importante e necessário por atender demandas específicas de empresas, não sendo encarado necessariamente como solução emergencial e até favorecendo o transporte público, que poderá ter mais chances de não ficar saturado para outras pessoas que o utilizam no horário de pico. Desde que autorizado pelo orgão municipal responsável por trânsito e regulamentado, com o estabelecimento dos pontos de parada e as rotas possíveis, evitando que prejudiquem a operação do transporte público coletivo e que os ônibus circulem em vias com dimensões e uso do solo inapropriados a esse tipo de veículo, os ônibus fretados não oferecem riscos à população. A própria mobilização das empresas em resolver seus problemas sem depender do poder público é uma maneira de tomar as rédeas de parte do problema da Mobilidade Urbana, na forma de parcerias entre poder público e privado.

No nível metropolitano, a solução depende muito do perfil dos deslocamentos, ocorrendo com frequência por motivo trabalho e estudo, como no caso das empresas do Vale do Paraíba e dos fretados que atendem a USP.

Também é necessário verificar as origens e destinos e a quantidade de passageiros transportados para verificar se a escolha de deslocamentos por ônibus onera ou não o sistema viário das cidades e as rodovias que ligam as regiões. No caso do Vale do Paraíba, tudo aponta para que se adote uma solução ferroviária, que só seria adequada se complementada por ônibus que fizessem a transição da Ferrovia para os principais pontos a serem acessados, dispersos na malha urbana. Isso porque os fretados têm a vantagem de oferecer um serviço praticamente porta a porta, enquanto que o ferroviário fica limitado a certo traçado, podendo comprometer o desenvolvido das cidades ao criar cicatrizes.

Além disso, uma vez verificada a predominância de deslocamentos pendulares com horários de pico bem definidos, das cidades satélites para as cidades pólo pela manhã e o inverso no final do dia, seria muito relevante que o traçado dessa Ferrovia buscasse atender outros perfis de viagem que não só as pendulares, favorecendo o desenvolvimento das áreas onde hoje há poucos empregos.

Por fim, no nível regional, em que se observa o aumento da frequência de deslocamentos, não há dúvidas de que um trem regional seria o mais adequado, desde que haja demanda comprovada. A regionalização do mercado de trabalho é fato consumado que não pode ser ignorado. Por isso, governo do Estado e Municípios devem estar alinhados para a construção de uma política de transporte regional que considere as questões aqui abordadas e o efeito de suas decisões na formação e crescimento das cidades. Para os casos em que a demanda atendida por transporte fretado poderia ser atendida por trem regional, deve-se fazer um estudo que defina as variáveis que comporão as tarifas do transporte público, de forma a torná-lo atrativo, o que também só ocorrerá se houver integração das diversas escalas de transporte público ? municipal, metropolitano e estadual.

Conclui-se que o transporte fretado não deve ser um modo de transporte vetado de toda e qualquer forma. Ao contrário, sua função nas cidades deve ser compreendida e disciplinada para que se tomem as decisões técnicas mais adequadas a cada perfil de demanda de deslocamentos, de acordo com os efeitos positivos e negativos para o transporte público coletivo e para a qualidade de vida dos cidadãos. Ainda, não se pode ignorar a influência de tal modo no planejamento e no futuro das cidades devido às condições de mobilidade que oferece, possibilitando novas formas de morar e novos modelos de urbanização.

Maria Ligia Nakamura Guillen Vianna - Arquiteta e Urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) com pós-graduação em Gerente de Cidade pela FAAP ( maliarquiteta@gmail.com ).

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