quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O carro e o demônio

"A grande pergunta é: que cidade queremos? Uma metrópole ou uma pequena cidade? É preciso que a sociedade defina se quer uma cidade amigável e sustentável ou uma cidade sufocada pelo automóvel". (Alain Flausch, secretário-geral da UITP)

Nunca se debateu tanto o tema mobilidade urbana no país. O que antes era restrito ao ambiente de técnicos e especialistas do setor, ocupa hoje mais e mais espaço público. Nunca tantos Congressos, seminários e fóruns, cadernos especiais de grandes jornais e reportagens especiais de redes de TV se debruçaram de vez sobre os problemas de transporte que assolam as grandes metrópoles, e que já começam a se espalhar com maior intensidade para as cidades médias qual uma mancha de óleo.

As questões são as mesmas de muitos anos, assim como os diagnósticos. Se algo mudou, foi a intensidade do problema, o tamanho das deseconomias geradas, afora a sensação de que estamos no limiar de uma decisão definitiva: a sociedade irá continuar a proteger e estimular o transporte de uso individual através de automóvel? Ou assumirá que a "conta da mobilidade urbana deve ser paga pelo transporte individual", como dizem especialistas ouvidos pelo Valor Econômico [Políticas devem desestimular o uso de carro particular].
A matéria do Valor, ao lado de outras sobre o tema mobilidade urbana, preencheu várias páginas da edição de quarta-feira (12). "Os custos de novos investimentos em infraestrutura e da melhoria dos serviços, na opinião dos especialistas que participaram do 16º Etransport, não precisam ser bancados por novos tributos. Basta um aumento das tarifas para quem usa o automóvel e outras medidas de desincentivo ao uso do carro particular", escreve a matéria do jornal.

Em matéria do Diário do Comércio-SP [Indústria do setor metroferroviário quer alavancar área de infraestrutura], o diretor executivo de Novos Negócios da CCR, Roberto Labarte, sugere ousadia para lidar com questões como a mobilidade urbana: "Nas grandes cidades é preciso implantar o pedágio urbano e tornar o cotidiano caro para quem usa carro".

Em artigo escrito em agosto de 1978, que trazemos em destaque na seção Ponto de Vista [Transporte Coletivo, um sistema integrado], o escritor e cineasta Chicralla Haidar já afirmava que "a utilização em larga escala do automóvel no transporte urbano é a causa fundamental da situação caótica do trânsito e o grande empecilho para a solução do problema do transporte de massa". Em 1978, há 36 anos.

O que mudou de 1978 até hoje se o diagnóstico, em essência, continua, em essência, o mesmo? Seguramente a intensidade dos congestionamentos, com o correspondente aumento das horas perdidas, impactando a produtividade, a saúde das pessoas e envenenando o ar que respiramos. Com toda a certeza, problemas que afetaram e muito a competitividade das cidades, piorando a qualidade de vida e o ambiente de negócios. Mas o que também não mudou foi a postura da sociedade de não querer abrir mão de privilégios recebidos ao longo de muitos anos, como, por exemplo, a utilização das ruas como espaço de congestionamento. Além disso, não mudou também a dificuldade que muitos gestores públicos encontraram para realizar mudanças radicais, visando alterar uma situação de inércia que acomodou a muitos, como se as coisas fossem de tal maneira por que sempre foram desta forma.

A indústria automotiva corre atrás da sobrevivência apostando que a saída está na inovação [Fórum na China debate a mobilidade urbana], como se debateu em um megaevento realizado na semana que passou na China (Michelin Challenge Bibendum). Enquanto isso, a motorização nas cidades brasileiras cresceu 80% em uma década, o que coloca a indústria na incômoda situação de a grande culpada pelo problema...

Demonizar o carro, além de não resolver coisa alguma, é tiro em alvo errado. A culpa do crime não é do punhal, mas de quem o empunha. Por que não se reverte a lógica dos investimentos em transporte no país, adotando-se um modelo que beneficie a maioria? Por que apenas os mais pobres estão condenados a pagar pelos serviços de transporte coletivo, enquanto os mais ricos são estimulados pela propaganda e pelas políticas públicas a se utilizar do automóvel como principal meio de transporte urbano? Basta ler algumas matérias publicadas na semana que passou para ver a real situação em que se encontra o transporte coletivo urbano, cercado de problemas que dependem, fundamentalmente, de decisões políticas profundas e perenes [Tarifa sobe, mas 'nós' do transporte continuam / Tarifa de ônibus tem defasagem de até 16% e vira nova 'bomba' / Energia mais cara preocupa trens e metrôs / Após pressão de comerciantes, CET apaga ciclovia em Higienópolis].

Dentro da incômoda repetição dos diagnósticos, e diante da aparente imobilidade decisória dos governantes - nos três níveis de poder -, a luta pelo espaço público continua demonstrando que os privilégios dos usuários de automóvel, até aqui e desde sempre, têm vencido de goleada.

Está claro que a única maneira de quebrar este círculo vicioso - que parte sempre da concordância no diagnóstico, e termina na discordância das soluções -, está em assumir que o futuro da mobilidade nas cidades passa por uma mudança de filosofia urbana aliada a pesados investimentos. No primeiro caso, a luta é de convencimento social. No segundo, de políticas públicas corajosas e consistentes. Juntas elas podem promover o avanço.
Separadas, é a repetição continuada do que estamos acostumados a presenciar. 

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